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Ana Kandsmar's Blog

January 11, 2022

Paulinho



Brancas/1993

Às vezes temos medo. Do desconhecido. Às vezes julgamos conhecer o desconhecido e temos medo. O desconhecido pode ser uma imagem parada na nossa mente. Nublada. Ensombrada. Na penumbra. Pode ser a noite que é a penumbra mais densa que conhecemos. Ou pode ser o escuro. O vazio. O medo pode ter muitas formas. Pode ser um rapaz. Um rapaz num hospício. Pode ser o Paulinho.

Encontrei-o pela primeira vez em 1993. Num dia de estágio de Saúde Mental e Psiquiatria nas Brancas. Primeiro vi as marcas do que fizera. O capot de um carro danificado no exterior do edifício. A coordenadora de estágio sorrira ao meu grupo e desculpara-se “foi o Paulinho, está tudo bem, não se assustem, foi só o Paulinho�.

Soaram dentro de mim as campainhas de alarme. Quem seria o Paulinho? Quem seria aquele ser que danificara a viatura? Porque o teria feito? Em que condições o teria feito?

As perguntas martelavam a minha mente, mas logo deram lugar à necessidade de dispensar atenção para o grupo, o local, os corredores por onde acabava de entrar, as salas que escancaravam portas e deixavam antever doentes que olhavam vagamente, através das janelas, as copas das arvores do pátio. Gente que estava ausente, gente que apenas ali tinha o corpo, qual âncora mantendo-os presos a este mundo. As mentes, essas, vagueavam, que eu bem podia ver-lhes os olhares vazios. Vazios e distantes a fazerem-me lembrar papagaios de papel soltos no ar, voando cada vez mais alto, como aqueles que em criança havia segurado tantas vezes para que não se perdessem entre as nuvens. Esqueci-me do Paulinho. Não para sempre. Esqueci-o apenas por momentos, aqueles momentos que me permitiram observar as paredes brancas do hospital, o ar desolado das salas, os frios corredores, o soalho rangendo à nossa passagem.

A meio do percurso, o Paulinho voltou sob a forma de vidros estilhaçados. Soube-o pela coordenadora que, mais uma vez, acusou: “Foi o Paulinho. Mas não se assustem, está tudo bem�.

Na minha cabeça o Paulinho ia tomando forma. Imaginava-o um gigante, os ombros largos, andar desengonçado, o passo largo, o olhar ameaçador. Sim, devia ser assim o Paulinho. Alguém perguntara como fazia o Paulinho todo aquele estrago, e ao longe, transpondo a minha imaginação que acabara de pintar o retrato fresco do Paulinho, ouvi mais uma vez a voz da coordenadora que lamentava a sua sorte “tem surtos. Dá cabeçadas onde calha, sobretudo nas paredes, nos móveis, onde calha, talvez como forma de se punir ou de se sentir presente…�

Ficámos todos em silêncio e acredito que durante os breves segundos que durou aquele silêncio, cada um de nós pintou o retrato do Paulinho. Como seria o Paulinho deles? O meu era aquele homem gigante, de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador. Dou mais umas pinceladas na minha pintura e acrescento-lhe um fio de baba que lhe resvala do canto esquerdo dos lábios, entreabertos numa espécie de esgar�, a ameaça de um sorriso, um sorriso sinistro.

Os passos que se aproximaram de mim, pelas minhas costas, não me tiraram logo do torpor. Ainda fiquei assim, quieta, a observar sem ver os colegas que circulavam pela sala, porque quem eu via era o Paulinho, apesar de que também não o via com os meus olhos físicos. Mas eis que, passos cada vez mais próximos me despertaram, e um calafrio que me percorreu a coluna, denunciou a chegada do Paulinho, o Paulinho verdadeiro e não o que eu pintava na minha cabeça.

Olhei de esguelha. Tão de esguelha que mal o vi, embora, eu quase pudesse jurar que ali estava o homem da minha imaginação. Claro que aquela mecha de cabelo caída sobre a testa, a cabeça inclinada, o andar apressado, só podiam indicar que ele vinha com tudo para cima de mim. Preparava-se para fazer às minhas costas o que havia feito ao capot do carro, preparava-se para fazer-me a mim o que havia feito aos vidros das janelas, aqueles vidros que jaziam ainda, estilhaçados, no chão frio do corredor. Estremeci e gelei, enquanto tudo à minha volta parecia ter congelado também, como num loop, uma paragem do tempo. Só o Paulinho continuava a mover-se na minha direção. E sim, tive medo, tive um medo que nunca havia sentido antes, medo de não saber lidar com a situação, medo de não saber lidar com o Paulinho, medo de que ele me magoasse à séria, medo de que ninguém o conseguisse parar…como podia eu parar o Paulinho se ele era um gigante, de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador?

Instintivamente, encolhi-me na esperança de assim lhe dar passagem sem que ele me tocasse. E o Paulinho passou pela soleira da porta sem me tocar. E a sua passagem, foi como um passe de mágica que fez o tempo voltar a correr. As pessoas à minha volta tornaram a circular pela sala e a falar, e a olhar, a comentar, indiferentes à presença do Paulinho, indiferentes ao medo que eu havia acabado de sentir, indiferentes aos batimentos ruidosos do meu coração, indiferentes ao tempo que para mim, havia parado. O Paulinho seguiu, atravessou o grupo que se espraiava pelo espaço e desapareceu num corredor escuro que se esticava no interior do edifício. Não voltei a ver o Paulinho, mas o Paulinho nunca mais me abandonou. Em todos estes anos de formações relatei este episodio aos meus formandos, sem omitir detalhes. Descrevi o Paulinho vezes sem conta, o gigante de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador, que nunca deixara de me assustar e, de cada vez que eu contava esta história, o Paulinho que já era gigante, ficava ainda mais gigante, e o Paulinho que já era ameaçador ficava ainda mais ameaçador.

O Reencontro

2020 /Minde

Faço o meu curso de especialidade e há que falar da experiência, da bagagem que trago comigo em tantos anos de trabalho. Não posso falar do meu percurso em enfermagem sem falar do Paulinho. Sem contar mais uma vez, a novos ouvidos que me dedicam uma velha atenção e escutam, avidamente, a história do doente mental que marcou para sempre a minha vida.

E é então que alguém interrompe o meu relato, com um entusiamo que eu desconheço e me dá a boa nova: “Esse Paulinho de que falas, sei quem é. Está aqui.�

“O Paulinho? O Paulinho está aqui?� Finalmente eu sei o que é o espanto emaranhado em estranheza�, quais são as probabilidades? Quantas vezes terá o universo lançado os dados até sair este número perfeito, o PI, a Proporção Áurea, a Capicua, o Jackpot? Haviam-se passado mais de três décadas e o Paulinho, para além de ainda permanecer no mundo dos vivos, havia transitado para outro hospital, precisamente o hospital que eu visitava agora.

Como numa pelicula de um filme dos anos 20, mudo e de imagens riscadas, revivi por breves segundos aquele momento em que os passos do Paulinho, nas minhas costas, me roubavam ao torpor da imaginação, uma imaginação que era como uma aranha tecendo a sua figura com fortes fios de aço. Indestrutíveis. Eu tinha que vê-lo. Tinha que olhar uma vez mais para aquele gigante de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador. Tinha que vê-lo. E vi. Entrei num quarto quase despido e encontrei um homem de olhar vazio, um homem que estava ausente. Um homem papagaio de papel, perdido entre as nuvens.

Mas aquele não era o Paulinho que a minha mente havia criado. Não era o gigante de ombros largos, andar desengonçado, passo largo e olhar ameaçador. Era apenas um homem. Um homem pequeno, até. Franzino. A cabeça, agora com as marcas de todas as cabeçadas que dera onde calhava, sobretudo nas paredes, havia ganho uma estranha forma achatada como uma planície, esquadrinhada de cicatrizes como campos de cultivo.

Não havia um fio de baba a resvalar-lhe do canto esquerdo dos lábios e não havia esgar, nem qualquer ameaça de sorriso sinistro. Nada no Paulinho era sinistro.

Não falei. Nem esperei que ele o fizesse. O Paulinho era um homem ausente. Da sua boca ninguém ouvia uma palavra há anos, e nada nos seus gestos havia sido, em décadas, qualquer prenuncio de interação. Nem uma sugestão. Nada. O Paulinho era um homem ausente. Sentei-me, silenciosamente, ao seu lado e deixei-me ficar ali, mais uma vez rendida ao torpor dos pensamentos e, naquele momento, mais do que ao torpor dos pensamentos: ao torpor das recordações. Aquele era o momento em que o Paulinho passava por mim na soleira da porta e eu gelava. Era aquele momento, aquele preciso momento que havia ficado gravado, indelével, na minha mente.

Era aquele instante, aquele preciso instante, tão injusto como a condenação de um inocente, a ocasião em que eu permitira à minha mente fazer do Paulinho um monstro, um monstro que habitara comigo por tantos anos, e que eu queria destruir agora. Pedi-lhe perdão. Senti o perdão a fluir nas minhas veias e senti a gratidão de poder estar ali, ao seu lado, devolvendo-o ao homem que ele era realmente. Ao ser humano que ele era, realmente.

E o inimaginável aconteceu. A minha mão, que eu tinha abandonado sobre o meu colo, sentia agora outra mão sobre ela, a apertá-la gentilmente. A mão do Paulinho.

O tempo voltou a congelar, não havia qualquer movimento ao redor, apenas os olhos daquele homem ausente que retornavam à vida, como se os meus olhos fossem as mãos da criança que segura o fio do papagaio de papel e puxa para baixo. Os olhos do Paulinho pousavam finalmente nos meus, tal como antes a sua mão havia pousado sobre a minha. Aquele homem ausente tinha regressado. Aquele homem já não era um homem ausente. Estava ali, pleno, num regresso inesperado, mas consciente, dizendo-me com um olhar que era afinal doce, tão doce, que sim, me perdoava. Entendi-o finalmente. Às vezes temos medo. Do desconhecido. Às vezes julgamos conhecer o desconhecido e temos medo. O desconhecido pode ser uma imagem parada na nossa mente. Nublada. Ensombrada. Na penumbra. Pode ser a noite que é a penumbra mais densa que conhecemos. Ou pode ser o escuro. O vazio. O medo pode ter muitas formas. Pode ser um rapaz. Um rapaz num hospício. Pode ser o Paulinho.


Ana Kandsmar

(uma história vivida na 1ª pessoa pela enfermeira especialista em Saúde Mental, Graça Rito)

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Published on January 11, 2022 06:01

August 11, 2021

A Casa




"À casa que foi nossa, não mais voltei. Minto.A estrada que lhe é larga na frente, serpenteia por entre arbustos que me escondem e eu espreitei-a, amiúde, nos dias seguintes à minha ausência, ao fecho definitivo da porta, à entrega das chaves. Depois disso, não mais retornei. Minto.Passei-lhe em frente ainda ontem, o carro deslizando devagarinho a rua deserta, ao compasso de um cortejo fúnebre, lento, lento. Vislumbrei num rompante, de desdém calcinado, a fachada curvilínea, o mármore da pedra emoldurando as janelas translúcidas. Minto.Em sobressalto, mirei o abandono da casa fechada. Doeu-me a secura curvada das roseiras que plantei em tempos e chorei a seda descuidada das suas pétalas. Quando também o futuro me parecia a direito e alinhado a prumo, levei à terra as hortenses azuis alongando o muro, a palmeira que cresceu viçosa ao centro da relva, a hera atrevida trepando os arcos. “Vende-se�. Segui, indiferente, que na vida não se pode olhar para trás. Minto.Parei e entrei. A mulher no cartaz da imobiliária sorri-me, confiante, enquanto cruza os braços, e o sorriso dela trespassa-me o orgulho ferido de morte. Avancei como uma lesma, rastejando a calçada solta que abre caminho até ao pórtico. Minto.Quase corri. Remendei, com o olhar, as cortinas rasgadas das janelas e hesitei-me no caminho sinuoso que conduz à entrada. Minto.Empurrei a porta, estranhamente entreaberta, e ali estavam os miúdos, tão pequenos ainda, quase bebés, inundados de mimos e cuidados. Tu, com o teu ar sobranceiro, sempre ocupado, no escritório que era a tua ilha, a tua torre solitária na casa, o cofre dos teus segredos, as aventuras que julgavas a salvo. Depois embalavas-me o cansaço num western manhoso e repetias em surdina as falas amargas do herói desamparado. Voltei as costas aos teus eus que me iam surgindo num bailado de memórias assombradas e saí. Saí sem pena nem saudade dos domingos em que cantavas e cortavas a relva num slalom tresloucado por entre os aspersores, como se dançasses à chuva e bradasses aos céus o estarmos felizes. Não minto.Como poderia se, em tantos anos, mentiste tu, tantas vezes?"

Ana Kandsmar in Somos Imortais, mas temos que morrer primeiro
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Published on August 11, 2021 04:30

December 25, 2020

Conto de Natal - Uma Fam��lia Muito Estranha

Teixeira era um homem velho. N��o sei que idade teria, mas parecia ter oitenta anos h��, pelo menos tr��s d��cadas.Muito raramente sa��a de casa. Uma casa grande, demasiado grande para um homem s��, sempre fechada, as portadas cerradas que impediam a entrada da luz do sol e, pensava Teixeira, os olhares indiscretos dos vizinhos.De manh�� ia ao correio e, uma vez por semana, �� mercearia ao fundo da rua. As crian��as temiam-no. Olhavam para o homem que nunca sorria e fugiam. Os cantos da boca sempre puxados para baixo e a testa sempre maldosamente franzida, intimidavam at�� os adultos e os mais pequenos passavam a palavra para que todos se afastassem do homem mau. Acreditavam que o Sr. Teixeira devia comer crian��as, embora n��o tivessem provas concretas.Teixeira tamb��m n��o ajudava a desvanecer aquela m�� impress��o que deixava nos outros, sobretudo na crian��ada, pois n��o fazia segredo de que detestava crian��as. Havia, contudo, outras coisas que Teixeira detestava. Sempre de mau humor, era de sobremaneira antip��tico com estrangeiros, de forma que quando soube que a casa ao lado da sua, h�� muito desabitada, estava a ser remodelada para receber uma fam��lia oriunda de um desses pa��ses em guerra no M��dio Oriente, ficou ainda com pior feitio.Na primeira semana de dezembro a fam��lia Alkhamis, oriunda da S��ria, instalou-se na pequena moradia contigua �� de Teixeira. O homem observou atentamente a az��fama da mudan��a pela fresta de uma portada que o vento havia quebrado parcialmente h�� coisa de dois anos, e que, a idade avan��ada e a sa��de fr��gil, n��o lhe davam alento para arranjar.���S��o estrangeiros e ainda por cima t��m crian��as���, resmungou, quando soube que os novos vizinhos eram S��rios e traziam com eles um rapazinho de 9 anos. De prop��sito, nunca os cumprimentava. Eles, pelo contr��rio, cumprimentavam-no sempre, am��vel e insistentemente, at�� que, ao fim de um tempo, n��o lhe restou mais do que responder �� sauda����o.��� Porque �� que tens um olhar t��o mau? ��� perguntou-lhe certo dia de chofre Abu, arranhando o seu portugu��s novinho em folha. ��� Est��s zangado ou est��s triste?Aquela pergunta irritou o Senhor Teixeira. Fora inusitada e despropositada, j�� que os seus sentimentos n��o eram da conta de ningu��m e muito menos daquele mi��do estrangeiro. Um mi��do impertinente e metedi��o. N��o respondeu, limitando-se a entrar em casa, e o seu olhar logo caiu no espelho do Hall que lhe refletiu, prontamente, o rosto. Carregou ainda mais o sobrolho enquanto se perguntava, mentalmente, se havia alguma regra, alguma lei escrita fosse onde fosse, que o abrigasse a andar sempre com um sorriso estampado na cara. Que disparate! Ele, Jo��o Teixeira, j�� tinha vivido muito e s�� ele determinaria de que forma devia viver e com que cara se mostraria aos outros. Que rapazinho petulante e atrevido! O seu comportamento era, com certeza, fruto da educa����o dada por aqueles mu��ulmanos imprest��veis e terroristas. Sim, terroristas. Era bem prov��vel que numa daquelas caixas que eles haviam mudado para a sua nova casa, tivessem armas ou bombas l�� dentro.Mas, na manh�� seguinte, Abu teve a ousadia de tocar-lhe �� porta. Perguntou se o Sr. Teixeira n��o teria uns patins de gelo j�� velhos que n��o lhe servissem, pois gostaria muito de experimentar a pista de gelo que acabava de ser inaugurada no campo da Feira de Natal. Abu parecia muito entusiasmado enquanto explicava que se tivesse uns patins, seria mais f��cil entrar nas brincadeiras e fazer novos amigos.���N��o, n��o tinha���. E mesmo que tivesse, n��o os daria ao mi��do estrangeiro. O Sr. Teixeira p��-lo da porta para fora de forma rude e desagrad��vel. Pensou assim que tinha, finalmente, descartado o problema. O rapaz n��o voltaria a ter coragem para lhe bater �� porta, o que era excelente, e acreditou que havia cortado o mal pela raiz. N��o queria confian��as com aquela gente.Todavia, o Sr. Teixeira enganara-se. Foi com uma boa dose de incredulidade que, dois dias mais tarde, viu Abu, novamente a bater-lhe �� porta. Desta vez, o rapazito vinha carregado com uma panela de Shakshuka, um prato t��pico da Siria que a m��e de Abu recriara naquela terra portuguesa.Teixeira sabia muito bem que tudo aquilo tinha uma inten����o escondida e certamente que n��o seria boa. Adivinhava que que se aquela fam��lia queria ganhar a sua confian��a, o fazia pelas piores raz��es. Por isso, declinou a oferta, n��o contando com a insist��ncia de Abu, por instantes, breves instantes, que a mente de Teixeira n��o parava de criar imagens de terror perpetrado pelos Alkhamis, Teixeira sentiu os aromas que se soltavam da panela. Aromas provocadores. Cheirava-lhe bem. Quando deu por si, hipnotizado pelo cheiro penetrante da comida que fumegava, l�� acabou por aceitar, nem agradecendo, convencendo-se de que o fizera apenas para despachar o rapaz. Fechou a porta com estrondo e caminhou a passo largo para a cozinha, disposto a deitar toda aquela comida no lixo, mas mal abriu a tampa da panela, de novo aquele aroma delicioso o demoveu do seu intento. Quase maquinalmente, agarrou num garfo e provou a comida, ainda que a desconfian��a n��o o tivesse abandonado. Deu por si a devorar com inusitada avidez tudo o que a panela continha, culpando-se de seguida por t��-lo feito. Passou aquele dia e o dia seguinte zangado consigo mesmo por ter aceite a panela com a comida. E agora, como a devolveria? Decidiu meter cinco euros l�� dentro, pois devia ser disso que aquela gente estranha estava �� espera. Nunca aceitaria esmolas de ningu��m! Tamb��m n��o necessitava delas!Para sua indigna����o, o dia seguinte trouxera-lhe os 5 euros de volta �� caixa do correio. Os Alkhamis tinham-lhe feito a afronta de devolver o dinheiro. Quem eles pensavam que eram? O que �� que queriam? Teriam achado pouco os cinco euros e quereriam mais dinheiro? Claro que sim. Oportunistas!Por altura do Natal, as coisas foram piorando. Primeiro, encontrou um saco de bolachinhas pendurado na ma��aneta da porta; depois, convidaram-no para o lanche. Naturalmente, n��o foi. Por fim, quando viram que sofria de uma lombalgia, racharam-lhe a lenha e arranjaram-lhe a portada que o vendaval de h�� dois anos havia partido.Mas o Sr. Teixeira n��o queria de maneira alguma ficar em d��vida. Por isso, quis dar-lhes cinquenta euros, e mais uma vez se indignou quando os vizinhos declinaram, agradecidos. Disseram que se tratava apenas de uma ���ajuda entre vizinhos���, coisa que ele achou muito estranha. Atitudes dessas s�� podiam trazer ��gua no bico, que ele bem sabia que ningu��m dava nada a ningu��m.Uma semana antes do Natal, a Senhora Alkhamis bateu-lhe �� porta para o convidar para a consoada. Aquilo ainda lhe soou mais estranho, pois sabia que os mu��ulmanos n��o celebravam o Natal. Claro que n��o iria e apressou-se a declinar o convite, mas foi apanhado de surpresa, quando a Senhora Alkhamis se antecipou a explicar que apesar do marido ser mu��ulmano ela era crist�� e na sua casa sempre se celebrava o natal, pois os membros daquela fam��lia estavam habituados a respeitar-se uns aos outros. Por outro lado, tamb��m fora apanhado de surpresa pois nunca antes havia sido convidado por nenhuma fam��lia para passar o Natal. Tendo isso em conta, desta vez agradeceu ao mesmo tempo em que recusava o convite, tendo por, dada a insist��ncia da matriarca da fam��lia, acabado por dizer que ia pensar. Continuava a perguntar-se o que andariam aquelas pessoas a tramar. Devia avisar a pol��cia? Cogitou alguns instantes sobre este assunto, mas abandonou a ideia, pois n��o queria passar por rid��culo. Ia acus��-los de qu��, realmente?O dia 24 de dezembro estava cada vez mais pr��ximo e Teixeira ainda n��o tinha conseguido decidir-se. Ou melhor, decidir-se j�� tinha decidido, mas tinha que arranjar uma forma de o dizer sem parecer grosseiro, pois, para todos os efeitos, a atitude dos Alkhamis parecia-lhe am��vel.Na v��spera de Natal, decidira comprar algum bacalhau para si mesmo, pois fazia quest��o de manter aquela tradi����o para a consoada, ainda que estivesse completamente s��. Ao longe, vislumbrou Abu parado na beira da pista gelada a ver os outros rapazes a patinar. Aproximou-se. Alguns mi��dos gozavam com ele por n��o ter patins e atiravam-lhe com bolas de gelo. Quando Abu deu conta de que Teixeira o observava, correu para ele e abra��ou-o. Teixeira assustou-se com aquela busca por prote����o, precisamente, nos seus bra��os. Aquilo era deveras estranho, pois habituara-se a que todas as crian��as lhe fugissem. Ent��o, sentiu pela primeira vez um estranho calor a crescer-lhe no peito, uma emo����o que permanecia escondida h�� tantos anos, que ele j�� nem se lembrava de que ela existia. Sentiu os olhos cada vez mais h��midos e, ��s tantas, uma l��grima atrevida rolou-lhe pelo rosto abaixo. Repreendeu-se no imediato, tentando afastar o rapaz. N��o era pr��prio. Se o seu pai ainda fosse vivo, havia de lhe dar um belo raspanete por aquele arrebatamento. Logo o pai que sempre odiara sentimentalismos.Caminhava para casa imerso naqueles pensamentos quando os seus olhos poisaram na montra de uma loja. Havia patins de todas cores e tamanhos e assim enfeitados com aquelas decora����es natal��cias pareciam ainda mais apelativos. O rosto de Abu assomou-lhe �� mente. Logo seguido de um flash com a imagem do rapazito recebendo um daqueles patins. Tal como tinha acontecido, quando recebera a panela de Shakshuka, Teixeira entrou em modo aut��mato. Entrou na loja e comprou o par de patins melhor e mais bonito que l�� encontrou.Ainda n��o sabia muito bem porque o tinha feito, apenas sabia que tinha sentido uma necessidade urgente de o fazer e tamb��m em modo aut��mato caminhou com o passo apressado para a casa dos Alkhamis com o embrulho debaixo do bra��o. A ��nica coisa em que conseguia pensar era na alegria de Abu ao receber aquele presente.A Sr.�� Alkhamis recebeu-o afetuosamente, cumprimentando-o como se ele fizesse parte da fam��lia. Abu, ao v��-lo, saltou-lhe ao pesco��o, e o Sr. Alkhamis deu-lhe um aperto de m��o e ofereceu-lhe a ��nica poltrona da casa. Teixeira n��o sabia muito bem o que fazer ou que dizer, mas j�� que ali estava, resolvera baixar a guarda e mostrava-se tamb��m af��vel e cordial.A mob��lia n��o era de bom gosto, faltavam v��rias coisas na casa que era, afinal de contas, a casa de uma fam��lia pobre acabada de chegar de uma parte long��nqua do mundo, sabe-se l�� porque tem��vel raz��o. Mesmo assim, detetou a presen��a de um conforto inesperado na casa, um conforto que n��o vinha de m��veis bonitos e tapetes quentes, era mais um conforto humano. A casa era acolhedora apesar do tanto que lhe faltava, porque tinha amor de sobra. A ��rvore de Natal estava decorada, a mesa humilde estava posta e a comida cheirava maravilhosamente. Parecia-lhe um daqueles natais da sua inf��ncia quando a m��e ainda vivia.Ap��s o jantar, a fam��lia entoou c��nticos natal��cios e Teixeira quis praguejar enquanto as l��grimas lhe saltavam dos olhos. Certamente que se o pai o visse, o repreenderia por se deixar emocionar daquela maneira.Pouco depois, quando o rel��gio da igreja bateu a doze badaladas, Teixeira esperou que a Sr�� Alkhamis come��asse a distribuir os presentes. N��o os havia. �� meia-noite, todos deram as m��os em ora����o e at�� o Sr�� Alkhami, que era mu��ulmano, agradeceu pela noite que fora passada em amor, sa��de e paz e isso era o mais importante. Teixeira n��o deixou de notar alguma tristeza em Abu quando os pais lhe explicaram que no ano seguinte, o Natal seria com certeza melhor e que ent��o ele teria o seu presente. Talvez, quem sabe, os patins que ele tanto desejava. Ent��o, Teixeira levantou-se e tirou de tr��s da poltrona em que assistira aos c��nticos, o presente que comprara para Abu.Enquanto o rapazinho ia desembrulhando, incr��dulo, o seu presente, Teixeira pensou que poderia morrer naquele preciso momento, poderia morrer nessa noite, ou na manh�� seguinte, pois acabara de viver o momento mais bonito que alguma vez tinha vivido. Os olhos brilhantes de Abu, ao ver os patins, luziam mais que as luzes da ��rvore de Natal todas juntas e essa seria a imagem que Teixeira levaria nos seus olhos, no dia em que eles se fechassem para sempre, porque ele sim, acabara de receber o melhor e mais bonito de todos os presentes.

Ana Kandsmar






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Published on December 25, 2020 09:11

Conto de Natal - Uma Família Muito Estranha

Teixeira era um homem velho. Não sei que idade teria, mas parecia ter oitenta anos há, pelo menos três décadas.Muito raramente saía de casa. Uma casa grande, demasiado grande para um homem só, sempre fechada, as portadas cerradas que impediam a entrada da luz do sol e, pensava Teixeira, os olhares indiscretos dos vizinhos.De manhã ia ao correio e, uma vez por semana, à mercearia ao fundo da rua. As crianças temiam-no. Olhavam para o homem que nunca sorria e fugiam. Os cantos da boca sempre puxados para baixo e a testa sempre maldosamente franzida, intimidavam até os adultos e os mais pequenos passavam a palavra para que todos se afastassem do homem mau. Acreditavam que o Sr. Teixeira devia comer crianças, embora não tivessem provas concretas.Teixeira também não ajudava a desvanecer aquela má impressão que deixava nos outros, sobretudo na criançada, pois não fazia segredo de que detestava crianças. Havia, contudo, outras coisas que Teixeira detestava. Sempre de mau humor, era de sobremaneira antipático com estrangeiros, de forma que quando soube que a casa ao lado da sua, há muito desabitada, estava a ser remodelada para receber uma família oriunda de um desses países em guerra no Médio Oriente, ficou ainda com pior feitio.Na primeira semana de dezembro a família Alkhamis, oriunda da Síria, instalou-se na pequena moradia contigua à de Teixeira. O homem observou atentamente a azáfama da mudança pela fresta de uma portada que o vento havia quebrado parcialmente há coisa de dois anos, e que, a idade avançada e a saúde frágil, não lhe davam alento para arranjar.“São estrangeiros e ainda por cima têm crianças�, resmungou, quando soube que os novos vizinhos eram Sírios e traziam com eles um rapazinho de 9 anos. De propósito, nunca os cumprimentava. Eles, pelo contrário, cumprimentavam-no sempre, amável e insistentemente, até que, ao fim de um tempo, não lhe restou mais do que responder à saudação.� Porque é que tens um olhar tão mau? � perguntou-lhe certo dia de chofre Abu, arranhando o seu português novinho em folha. � Estás zangado ou estás triste?Aquela pergunta irritou o Senhor Teixeira. Fora inusitada e despropositada, já que os seus sentimentos não eram da conta de ninguém e muito menos daquele miúdo estrangeiro. Um miúdo impertinente e metediço. Não respondeu, limitando-se a entrar em casa, e o seu olhar logo caiu no espelho do Hall que lhe refletiu, prontamente, o rosto. Carregou ainda mais o sobrolho enquanto se perguntava, mentalmente, se havia alguma regra, alguma lei escrita fosse onde fosse, que o abrigasse a andar sempre com um sorriso estampado na cara. Que disparate! Ele, João Teixeira, já tinha vivido muito e só ele determinaria de que forma devia viver e com que cara se mostraria aos outros. Que rapazinho petulante e atrevido! O seu comportamento era, com certeza, fruto da educação dada por aqueles muçulmanos imprestáveis e terroristas. Sim, terroristas. Era bem provável que numa daquelas caixas que eles haviam mudado para a sua nova casa, tivessem armas ou bombas lá dentro.Mas, na manhã seguinte, Abu teve a ousadia de tocar-lhe à porta. Perguntou se o Sr. Teixeira não teria uns patins de gelo já velhos que não lhe servissem, pois gostaria muito de experimentar a pista de gelo que acabava de ser inaugurada no campo da Feira de Natal. Abu parecia muito entusiasmado enquanto explicava que se tivesse uns patins, seria mais fácil entrar nas brincadeiras e fazer novos amigos.“Não, não tinha�. E mesmo que tivesse, não os daria ao miúdo estrangeiro. O Sr. Teixeira pô-lo da porta para fora de forma rude e desagradável. Pensou assim que tinha, finalmente, descartado o problema. O rapaz não voltaria a ter coragem para lhe bater à porta, o que era excelente, e acreditou que havia cortado o mal pela raiz. Não queria confianças com aquela gente.Todavia, o Sr. Teixeira enganara-se. Foi com uma boa dose de incredulidade que, dois dias mais tarde, viu Abu, novamente a bater-lhe à porta. Desta vez, o rapazito vinha carregado com uma panela de Shakshuka, um prato típico da Siria que a mãe de Abu recriara naquela terra portuguesa.Teixeira sabia muito bem que tudo aquilo tinha uma intenção escondida e certamente que não seria boa. Adivinhava que que se aquela família queria ganhar a sua confiança, o fazia pelas piores razões. Por isso, declinou a oferta, não contando com a insistência de Abu, por instantes, breves instantes, que a mente de Teixeira não parava de criar imagens de terror perpetrado pelos Alkhamis, Teixeira sentiu os aromas que se soltavam da panela. Aromas provocadores. Cheirava-lhe bem. Quando deu por si, hipnotizado pelo cheiro penetrante da comida que fumegava, lá acabou por aceitar, nem agradecendo, convencendo-se de que o fizera apenas para despachar o rapaz. Fechou a porta com estrondo e caminhou a passo largo para a cozinha, disposto a deitar toda aquela comida no lixo, mas mal abriu a tampa da panela, de novo aquele aroma delicioso o demoveu do seu intento. Quase maquinalmente, agarrou num garfo e provou a comida, ainda que a desconfiança não o tivesse abandonado. Deu por si a devorar com inusitada avidez tudo o que a panela continha, culpando-se de seguida por tê-lo feito. Passou aquele dia e o dia seguinte zangado consigo mesmo por ter aceite a panela com a comida. E agora, como a devolveria? Decidiu meter cinco euros lá dentro, pois devia ser disso que aquela gente estranha estava à espera. Nunca aceitaria esmolas de ninguém! Também não necessitava delas!Para sua indignação, o dia seguinte trouxera-lhe os 5 euros de volta à caixa do correio. Os Alkhamis tinham-lhe feito a afronta de devolver o dinheiro. Quem eles pensavam que eram? O que é que queriam? Teriam achado pouco os cinco euros e quereriam mais dinheiro? Claro que sim. Oportunistas!Por altura do Natal, as coisas foram piorando. Primeiro, encontrou um saco de bolachinhas pendurado na maçaneta da porta; depois, convidaram-no para o lanche. Naturalmente, não foi. Por fim, quando viram que sofria de uma lombalgia, racharam-lhe a lenha e arranjaram-lhe a portada que o vendaval de há dois anos havia partido.Mas o Sr. Teixeira não queria de maneira alguma ficar em dívida. Por isso, quis dar-lhes cinquenta euros, e mais uma vez se indignou quando os vizinhos declinaram, agradecidos. Disseram que se tratava apenas de uma “ajuda entre vizinhos�, coisa que ele achou muito estranha. Atitudes dessas só podiam trazer água no bico, que ele bem sabia que ninguém dava nada a ninguém.Uma semana antes do Natal, a Senhora Alkhamis bateu-lhe à porta para o convidar para a consoada. Aquilo ainda lhe soou mais estranho, pois sabia que os muçulmanos não celebravam o Natal. Claro que não iria e apressou-se a declinar o convite, mas foi apanhado de surpresa, quando a Senhora Alkhamis se antecipou a explicar que apesar do marido ser muçulmano ela era cristã e na sua casa sempre se celebrava o natal, pois os membros daquela família estavam habituados a respeitar-se uns aos outros. Por outro lado, também fora apanhado de surpresa pois nunca antes havia sido convidado por nenhuma família para passar o Natal. Tendo isso em conta, desta vez agradeceu ao mesmo tempo em que recusava o convite, tendo por, dada a insistência da matriarca da família, acabado por dizer que ia pensar. Continuava a perguntar-se o que andariam aquelas pessoas a tramar. Devia avisar a polícia? Cogitou alguns instantes sobre este assunto, mas abandonou a ideia, pois não queria passar por ridículo. Ia acusá-los de quê, realmente?O dia 24 de dezembro estava cada vez mais próximo e Teixeira ainda não tinha conseguido decidir-se. Ou melhor, decidir-se já tinha decidido, mas tinha que arranjar uma forma de o dizer sem parecer grosseiro, pois, para todos os efeitos, a atitude dos Alkhamis parecia-lhe amável.Na véspera de Natal, decidira comprar algum bacalhau para si mesmo, pois fazia questão de manter aquela tradição para a consoada, ainda que estivesse completamente só. Ao longe, vislumbrou Abu parado na beira da pista gelada a ver os outros rapazes a patinar. Aproximou-se. Alguns miúdos gozavam com ele por não ter patins e atiravam-lhe com bolas de gelo. Quando Abu deu conta de que Teixeira o observava, correu para ele e abraçou-o. Teixeira assustou-se com aquela busca por proteção, precisamente, nos seus braços. Aquilo era deveras estranho, pois habituara-se a que todas as crianças lhe fugissem. Então, sentiu pela primeira vez um estranho calor a crescer-lhe no peito, uma emoção que permanecia escondida há tantos anos, que ele já nem se lembrava de que ela existia. Sentiu os olhos cada vez mais húmidos e, às tantas, uma lágrima atrevida rolou-lhe pelo rosto abaixo. Repreendeu-se no imediato, tentando afastar o rapaz. Não era próprio. Se o seu pai ainda fosse vivo, havia de lhe dar um belo raspanete por aquele arrebatamento. Logo o pai que sempre odiara sentimentalismos.Caminhava para casa imerso naqueles pensamentos quando os seus olhos poisaram na montra de uma loja. Havia patins de todas cores e tamanhos e assim enfeitados com aquelas decorações natalícias pareciam ainda mais apelativos. O rosto de Abu assomou-lhe à mente. Logo seguido de um flash com a imagem do rapazito recebendo um daqueles patins. Tal como tinha acontecido, quando recebera a panela de Shakshuka, Teixeira entrou em modo autómato. Entrou na loja e comprou o par de patins melhor e mais bonito que lá encontrou.Ainda não sabia muito bem porque o tinha feito, apenas sabia que tinha sentido uma necessidade urgente de o fazer e também em modo autómato caminhou com o passo apressado para a casa dos Alkhamis com o embrulho debaixo do braço. A única coisa em que conseguia pensar era na alegria de Abu ao receber aquele presente.A Sr.ª Alkhamis recebeu-o afetuosamente, cumprimentando-o como se ele fizesse parte da família. Abu, ao vê-lo, saltou-lhe ao pescoço, e o Sr. Alkhamis deu-lhe um aperto de mão e ofereceu-lhe a única poltrona da casa. Teixeira não sabia muito bem o que fazer ou que dizer, mas já que ali estava, resolvera baixar a guarda e mostrava-se também afável e cordial.A mobília não era de bom gosto, faltavam várias coisas na casa que era, afinal de contas, a casa de uma família pobre acabada de chegar de uma parte longínqua do mundo, sabe-se lá porque temível razão. Mesmo assim, detetou a presença de um conforto inesperado na casa, um conforto que não vinha de móveis bonitos e tapetes quentes, era mais um conforto humano. A casa era acolhedora apesar do tanto que lhe faltava, porque tinha amor de sobra. A árvore de Natal estava decorada, a mesa humilde estava posta e a comida cheirava maravilhosamente. Parecia-lhe um daqueles natais da sua infância quando a mãe ainda vivia.Após o jantar, a família entoou cânticos natalícios e Teixeira quis praguejar enquanto as lágrimas lhe saltavam dos olhos. Certamente que se o pai o visse, o repreenderia por se deixar emocionar daquela maneira.Pouco depois, quando o relógio da igreja bateu a doze badaladas, Teixeira esperou que a Srª Alkhamis começasse a distribuir os presentes. Não os havia. À meia-noite, todos deram as mãos em oração e até o Srº Alkhami, que era muçulmano, agradeceu pela noite que fora passada em amor, saúde e paz e isso era o mais importante. Teixeira não deixou de notar alguma tristeza em Abu quando os pais lhe explicaram que no ano seguinte, o Natal seria com certeza melhor e que então ele teria o seu presente. Talvez, quem sabe, os patins que ele tanto desejava. Então, Teixeira levantou-se e tirou de trás da poltrona em que assistira aos cânticos, o presente que comprara para Abu.Enquanto o rapazinho ia desembrulhando, incrédulo, o seu presente, Teixeira pensou que poderia morrer naquele preciso momento, poderia morrer nessa noite, ou na manhã seguinte, pois acabara de viver o momento mais bonito que alguma vez tinha vivido. Os olhos brilhantes de Abu, ao ver os patins, luziam mais que as luzes da árvore de Natal todas juntas e essa seria a imagem que Teixeira levaria nos seus olhos, no dia em que eles se fechassem para sempre, porque ele sim, acabara de receber o melhor e mais bonito de todos os presentes.

Ana Kandsmar






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Published on December 25, 2020 09:11

October 20, 2020

A Perdi����o de D. Sancho II, Paulo Pimentel

J�� o tinha feito para a iniciativa da UCLA, mas de uma forma mais resumida. Agora o v��deo completo onde vos apresento Paulo Pimentel e falo do seu mais recente romance, A Perdi����o de D. Sancho II.
"As nossas leituras
Hoje vamos �� Idade M��dia, um per��odo da Hist��ria que me fascina. Fazemos uma visita �� corte do rei de Portugal D. Sancho II, e, mais do que �� corte deste monarca, vamos ao interior da sua mente (neste excerto, �� mente de Dona M��cia, sua esposa), atrav��s da vis��o de Paulo Pimentel e da voz de excelente dic����o de Ana Kandsmar, num livro sa��do h�� pouco tempo: ��A Perdi����o de D. Sancho II��.

Poucos conhecem a hist��ria deste rei desgra��ado, que governou de 1223 at�� 1248, altura em que foi deposto do trono pelo pr��prio irm��o, futuro Afonso III, e que viu ser lan��ado sobre o seu reino um Interdito da Santa S�� (pena grav��ssima na ��poca), que foi excomungado pelo papa Greg��rio IX e que chegou a ser classificado pelo pont��fice de Roma com o desonroso t��tulo de "Rex inutilis" (o rei in��til). Tudo porque, numa atitude de coragem, quis o melhor para o seu pa��s, combatendo o enorme poder da nobreza e da Igreja.Penso que este livro �� uma excelente oportunidade de ficarmos a conhecer melhor a vida conturbada de D. Sancho II, obrigado a exilar-se, vindo a morrer triste, longe da sua p��tria, com apenas 38 anos.Neste excerto embrenhamo-nos nas medita����es ambiciosas de Dona M��cia Lopes de Haro, a esposa de Sancho, que viu o casamento anulado pelo papa e foi raptada pelos inimigos do marido. Nunca mais se tornaram a ver."



Jo��o Nuno Azambuja




(Biografia: Ana Kandsmar �� m��e, autora, jornalista, copywriter, ghost-writer e blogger. Escreve por prazer. Por paix��o. Por necessidade. L�� muito. Para se evadir. Para se construir. Para aprender. Nasceu na d��cada de 70 e cresceu com livros. Os seus e os dos outros. "A Guardi�� - O livro de Jade do C��u", �� o romance hist��rico/fant��stico que publicou pela primeira vez em 2015. No mesmo ano, participou, com o conto "Kilimanjaro", na antologia de contos de autores da editora Capital Books, assinando ambas as edi����es com o nome Ana Cristina Pinto. Em 2017, republicou o romance "A Guardi�� - O Livro de jade do C��u" com as Edi����es Mahatma. Em 2018, com a mesma editora, publicou o romance "A Lenda do Havn", e em 2019 participou na antologia po��tica Conex��es Atl��nticas, projeto partilhado por v��rios autores do mundo lus��fono.)




Iniciativa com o apoio institucional da UCCLA.



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Published on October 20, 2020 13:00

A Perdição de D. Sancho II, Paulo Pimentel

Já o tinha feito para a iniciativa da UCLA, mas de uma forma mais resumida. Agora o vídeo completo onde vos apresento Paulo Pimentel e falo do seu mais recente romance, A Perdição de D. Sancho II.
"As nossas leituras
Hoje vamos à Idade Média, um período da História que me fascina. Fazemos uma visita à corte do rei de Portugal D. Sancho II, e, mais do que à corte deste monarca, vamos ao interior da sua mente (neste excerto, à mente de Dona Mécia, sua esposa), através da visão de Paulo Pimentel e da voz de excelente dicção de Ana Kandsmar, num livro saído há pouco tempo: «A Perdição de D. Sancho II».

Poucos conhecem a história deste rei desgraçado, que governou de 1223 até 1248, altura em que foi deposto do trono pelo próprio irmão, futuro Afonso III, e que viu ser lançado sobre o seu reino um Interdito da Santa Sé (pena gravíssima na época), que foi excomungado pelo papa Gregório IX e que chegou a ser classificado pelo pontífice de Roma com o desonroso título de "Rex inutilis" (o rei inútil). Tudo porque, numa atitude de coragem, quis o melhor para o seu país, combatendo o enorme poder da nobreza e da Igreja.Penso que este livro é uma excelente oportunidade de ficarmos a conhecer melhor a vida conturbada de D. Sancho II, obrigado a exilar-se, vindo a morrer triste, longe da sua pátria, com apenas 38 anos.Neste excerto embrenhamo-nos nas meditações ambiciosas de Dona Mécia Lopes de Haro, a esposa de Sancho, que viu o casamento anulado pelo papa e foi raptada pelos inimigos do marido. Nunca mais se tornaram a ver."



João Nuno Azambuja




(Biografia: Ana Kandsmar é mãe, autora, jornalista, copywriter, ghost-writer e blogger. Escreve por prazer. Por paixão. Por necessidade. Lê muito. Para se evadir. Para se construir. Para aprender. Nasceu na década de 70 e cresceu com livros. Os seus e os dos outros. "A Guardiã - O livro de Jade do Céu", é o romance histórico/fantástico que publicou pela primeira vez em 2015. No mesmo ano, participou, com o conto "Kilimanjaro", na antologia de contos de autores da editora Capital Books, assinando ambas as edições com o nome Ana Cristina Pinto. Em 2017, republicou o romance "A Guardiã - O Livro de jade do Céu" com as Edições Mahatma. Em 2018, com a mesma editora, publicou o romance "A Lenda do Havn", e em 2019 participou na antologia poética Conexões Atlânticas, projeto partilhado por vários autores do mundo lusófono.)




Iniciativa com o apoio institucional da UCCLA.



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Published on October 20, 2020 13:00

July 24, 2020

Os imprest��veis

N��o �� que os imprest��veis n��o gostem tanto de animais para gostar mais de pessoas.Do que os imprest��veis n��o gostam �� de ajudar.A trag��dia que se deu sobre os animais de Santo Tirso provocou uma onda de indigna����o nas redes sociais e centenas de pessoas foram al��m do Facebook, do Twitter e do Instagram para ajudar os animais sobreviventes. Muitos tentaram deslocar-se ao local para resgatar mais de uma centena de c��es e gatos, outros criaram campanhas de angaria����o de fundos, precisamente, para apoiar aqueles que ficaram com contas de veterin��rios ��s costas e ainda custos com alimenta����o. Um bem-haja para toda essa gente que fez e faz alguma coisa. Um bem-haja para aqueles que s��o capazes de se sensibilizar com o sofrimento dos animais, um sofrimento que ��, afinal, igual ao nosso. Morrer carbonizado, n��o �� menos doloroso para quem tem 4 patas. �� que os animais n��o s��o coisas, n��o s��o pedras, s��o seres vivos, sencientes, e com um n��vel de intelig��ncia que muita gente, nomeadamente um certo tipo de gente que descrevo abaixo, devia invejar.
Importa dizer que este tr��gico acontecimento revelou a exist��ncia de dois tipos de pessoas: as prest��veis e as imprest��veis.
Os prest��veis s��o-no, quase sempre, sem contrapartidas. As pessoas que s��o prest��veis acorrem ��s situa����es que encontram pelo caminho e ajudam, s��o ��teis. As pessoas que s��o prest��veis, geralmente, p��em amor no que fazem. Gente prest��vel n��o olha a quem ajuda. Ajuda e pronto. Isso inclui a ajuda aos sem-abrigo, aos idosos e at��, pasmem-se, ��queles que os criticam: os imprest��veis.
Sim, porque depois existe aquele tipo de gente que faz parte desse grupo dos imprest��veis. Esses s��o os que nunca ajudam, os que nunca saem da sua zona de conforto para estender a m��o seja a quem for, s��o os que prometem muito e nunca fazem nada. Sabes, aquela pessoa que diz que vai fazer isto e mais aquilo por ti, mas nunca faz nada? Pois ��, essa pessoa faz parte do grupo dos imprest��veis. Os imprest��veis s�� est��o verdadeiramente dispon��veis para fazer uma coisa: criticar quem faz, quem ajuda.
Fala-se na forma desumana como se trataram aqueles animais e aparecem logo os imprest��veis a falar de animalismo, comparando ( no sentido de menorizar os animais) animais com humanos, bradando que aos sem-abrigo ningu��m salva, ningu��m adopta, etc, etc...
Pergunta para essa gente: Quantos sem-abrigo j�� adoptou um imprest��vel? Deixem-me adivinhar: ZERO! Nem moedinha d��o, n��o �� verdade? Os imprest��veis passam para o outro lado da rua sempre que encontram �� frente algu��m que pede ajuda. Um imprest��vel n��o serve nem para indicar o caminho mais f��cil para se chegar a algum lado. Os imprest��veis s��o aquele tipo de gente que vira a cara aos sem-abrigo. Os imprest��veis fogem a sete p��s das campanhas de recolha de alimentos, quer as que decorrem em prol dos animais ou em prol das pessoas.
O imprest��vel �� aquele tipo que finge estar sempre ocupado s�� para n��o dar aten����o ao que se passa �� sua volta. O imprest��vel s�� olha para duas coisas: Para o seu umbigo e para a sua carteira. True story.
O imprest��vel consegue fazer compara����es incr��veis, s�� para justificar a sua in��rcia. Agarra, por exemplo, nos animais que s��o v��timas da viol��ncia e estupidez humana, sobretudo, vitimas da estupidez e viol��ncia de outros imprest��veis iguais a ele, e compara-os com os idosos espalhados por lares ilegais, esses dep��sitos de velhos onde, frequentemente, s��o maltratados, e com os quais um imprest��vel nunca se preocupa, dos quais um imprest��vel nunca fala, a n��o ser que ocorra uma desgra��a com animais, desgra��a essa que sensibilize a opini��o p��blica.Se nenhuma trag��dia que vitimize animais acontecer, os idosos bem podem apodrecer nos seus lares ilegais que, como �� sabido, com os imprest��veis n��o podem eles contar.
N��o acreditam? Vejam que foi preciso que morressem dezenas de animais carbonizados para que os imprest��veis se lembrassem dos idosos que vegetam nos lares. Acredito que n��o exagero se disser que, muito provavelmente, boa parte desses idosos enfiados em lares ilegais e outros que, apesar de legais deixam muito a desejar, s��o os pais, m��es e av��s dos imprest��veis. Os imprest��veis, s��o aquela esp��cie de gente que leva os seus pais para um lar qualquer, de prefer��ncia o mais baratinho e nunca mais l�� p��e os p��s para os visitar.
Os imprest��veis, por norma, fazem parte de uma ra��a que nunca faz acontecer nada e vai apenas a reboque do trabalho dos outros (muitas vezes recebendo os louros, pois eles s��o ex��mios em alardear o imenso trabalho que ���realizam���. Todavia, quando fazem alguma coisa, n��o se iludam, pois, os ��nicos benefici��rios s��o eles mesmos.
Os imprest��veis costumam sentir uma total aus��ncia de empatia para com os dramas alheios.
Com frequ��ncia, assobiam para o lado e esperam que outros ajudem para ent��o se prontificarem a fazer uma de duas coisas: Ou acalmar a sua pequena consci��ncia com a ideia de que quem precisa j�� est�� a ser ajudado, ou criticar quem ajuda.
Tens algum amigo que ultimamente publicou coisas como: ���As pessoas t��m as prioridades invertidas, s�� se preocupam com os animais, mas n��o se lembram dos idosos nem dos sem-abrigo!��� Tens? Ent��o n��o contes com ele para nada porque, claramente, esse teu amigo �� um imprest��vel.
Pela tua sa��de, aprende a identificar os imprest��veis. Assim, quando precisares de ajuda, j�� sabes a que portas n��o vale a pena bater. Aqui fica o resumo: O imprest��vel vem de uma esp��cie de gente desprez��vel, mais vulgarmente classificada como lixo humano (eles �� que n��o t��m no����o), gente que, egoisticamente, c�� anda no planeta a gastar os seus recursos e a consumir o oxig��nio de que os prest��veis precisam para continuar a respirar e a ajudar.
Como �� ��bvio, evidente e perfeitamente justific��vel, sim, eu gosto infinitamente mais dos animais, do que dos imprest��veis.


Ana Kandsmar


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Published on July 24, 2020 10:40

Os imprestáveis

Não é que os imprestáveis não gostem tanto de animais para gostar mais de pessoas.Do que os imprestáveis não gostam é de ajudar.A tragédia que se deu sobre os animais de Santo Tirso provocou uma onda de indignação nas redes sociais e centenas de pessoas foram além do Facebook, do Twitter e do Instagram para ajudar os animais sobreviventes. Muitos tentaram deslocar-se ao local para resgatar mais de uma centena de cães e gatos, outros criaram campanhas de angariação de fundos, precisamente, para apoiar aqueles que ficaram com contas de veterinários às costas e ainda custos com alimentação. Um bem-haja para toda essa gente que fez e faz alguma coisa. Um bem-haja para aqueles que são capazes de se sensibilizar com o sofrimento dos animais, um sofrimento que é, afinal, igual ao nosso. Morrer carbonizado, não é menos doloroso para quem tem 4 patas. É que os animais não são coisas, não são pedras, são seres vivos, sencientes, e com um nível de inteligência que muita gente, nomeadamente um certo tipo de gente que descrevo abaixo, devia invejar.
Importa dizer que este trágico acontecimento revelou a existência de dois tipos de pessoas: as prestáveis e as imprestáveis.
Os prestáveis são-no, quase sempre, sem contrapartidas. As pessoas que são prestáveis acorrem às situações que encontram pelo caminho e ajudam, são úteis. As pessoas que são prestáveis, geralmente, põem amor no que fazem. Gente prestável não olha a quem ajuda. Ajuda e pronto. Isso inclui a ajuda aos sem-abrigo, aos idosos e até, pasmem-se, àqueles que os criticam: os imprestáveis.
Sim, porque depois existe aquele tipo de gente que faz parte desse grupo dos imprestáveis. Esses são os que nunca ajudam, os que nunca saem da sua zona de conforto para estender a mão seja a quem for, são os que prometem muito e nunca fazem nada. Sabes, aquela pessoa que diz que vai fazer isto e mais aquilo por ti, mas nunca faz nada? Pois é, essa pessoa faz parte do grupo dos imprestáveis. Os imprestáveis só estão verdadeiramente disponíveis para fazer uma coisa: criticar quem faz, quem ajuda.
Fala-se na forma desumana como se trataram aqueles animais e aparecem logo os imprestáveis a falar de animalismo, comparando ( no sentido de menorizar os animais) animais com humanos, bradando que aos sem-abrigo ninguém salva, ninguém adopta, etc, etc...
Pergunta para essa gente: Quantos sem-abrigo já adoptou um imprestável? Deixem-me adivinhar: ZERO! Nem moedinha dão, não é verdade? Os imprestáveis passam para o outro lado da rua sempre que encontram à frente alguém que pede ajuda. Um imprestável não serve nem para indicar o caminho mais fácil para se chegar a algum lado. Os imprestáveis são aquele tipo de gente que vira a cara aos sem-abrigo. Os imprestáveis fogem a sete pés das campanhas de recolha de alimentos, quer as que decorrem em prol dos animais ou em prol das pessoas.
O imprestável é aquele tipo que finge estar sempre ocupado só para não dar atenção ao que se passa à sua volta. O imprestável só olha para duas coisas: Para o seu umbigo e para a sua carteira. True story.
O imprestável consegue fazer comparações incríveis, só para justificar a sua inércia. Agarra, por exemplo, nos animais que são vítimas da violência e estupidez humana, sobretudo, vitimas da estupidez e violência de outros imprestáveis iguais a ele, e compara-os com os idosos espalhados por lares ilegais, esses depósitos de velhos onde, frequentemente, são maltratados, e com os quais um imprestável nunca se preocupa, dos quais um imprestável nunca fala, a não ser que ocorra uma desgraça com animais, desgraça essa que sensibilize a opinião pública.Se nenhuma tragédia que vitimize animais acontecer, os idosos bem podem apodrecer nos seus lares ilegais que, como é sabido, com os imprestáveis não podem eles contar.
Não acreditam? Vejam que foi preciso que morressem dezenas de animais carbonizados para que os imprestáveis se lembrassem dos idosos que vegetam nos lares. Acredito que não exagero se disser que, muito provavelmente, boa parte desses idosos enfiados em lares ilegais e outros que, apesar de legais deixam muito a desejar, são os pais, mães e avós dos imprestáveis. Os imprestáveis, são aquela espécie de gente que leva os seus pais para um lar qualquer, de preferência o mais baratinho e nunca mais lá põe os pés para os visitar.
Os imprestáveis, por norma, fazem parte de uma raça que nunca faz acontecer nada e vai apenas a reboque do trabalho dos outros (muitas vezes recebendo os louros, pois eles são exímios em alardear o imenso trabalho que “realizam�. Todavia, quando fazem alguma coisa, não se iludam, pois, os únicos beneficiários são eles mesmos.
Os imprestáveis costumam sentir uma total ausência de empatia para com os dramas alheios.
Com frequência, assobiam para o lado e esperam que outros ajudem para então se prontificarem a fazer uma de duas coisas: Ou acalmar a sua pequena consciência com a ideia de que quem precisa já está a ser ajudado, ou criticar quem ajuda.
Tens algum amigo que ultimamente publicou coisas como: “As pessoas têm as prioridades invertidas, só se preocupam com os animais, mas não se lembram dos idosos nem dos sem-abrigo!� Tens? Então não contes com ele para nada porque, claramente, esse teu amigo é um imprestável.
Pela tua saúde, aprende a identificar os imprestáveis. Assim, quando precisares de ajuda, já sabes a que portas não vale a pena bater. Aqui fica o resumo: O imprestável vem de uma espécie de gente desprezível, mais vulgarmente classificada como lixo humano (eles é que não têm noção), gente que, egoisticamente, cá anda no planeta a gastar os seus recursos e a consumir o oxigénio de que os prestáveis precisam para continuar a respirar e a ajudar.
Como é óbvio, evidente e perfeitamente justificável, sim, eu gosto infinitamente mais dos animais, do que dos imprestáveis.


Ana Kandsmar


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Published on July 24, 2020 10:40

July 14, 2020

Obrigada, obrigada, adeus at�� �� pr��xima!

Eu sabia que n��o seria para sempre.

Sabia que esse teu esgar de c��o raivoso se dissiparia ante uma recorda����o ou outra que te viesse �� mem��ria, mal a rotina e o ramerr��o dos dias te aborrecessem de morte. O teu ��dio, a tua raiva, essa coisa que te arde no peito e te faz cuspir-me ofensas e improp��rios �� s�� uma m��scara para o amor que me tens e a manta com que tentas tapar a frustra����o de me teres a milhas

Eu sabia que acabarias por mendigar. O teu prazo, esse limite de tempo em que consegues respirar sem que me fa��as o teu suporte de vida, �� sempre curto, muito curto, mais longo do que eu desejaria, �� certo, mas infinitamente mais curto do que me prometes quando te afastas.

Houve um tempo em que aguentavas um m��s, dois v����� fingindo que eu n��o existo. Desta vez resististe mais. Bateste o teu record, qual nadador que supera o seu tempo a respirar debaixo de ��gua e orgulhosamente �� digno do Guiness. Lembraste-te ent��o de que tudo em mim �� genu��no e o teu sentimento ampulheta que te permite ignorar-me a prazo, desintoxicou-te dos teus extremos, do teu drama, da tua maneira enviesada e teatral de olhar as coisas��� Talvez, mas n��o te iludas. Continuas a irritar-me a um ponto que a ��nica solu����o �� esqueceres-me, tal como eu te esqueci. Tal como eu te esqueci tantas vezes.

Foi sempre esse o nosso mal, n��o foi? Tu e eu, pass��mos os ��ltimos���15 anos a esquecermo-nos um do outro. ��s vezes at�� o fazemos sem esfor��o. Ao princ��pio sentimo-nos livres, leves, quase felizes. O nosso ��nico engano �� achar que �� para sempre, que desta vez �� nunca mais.

Dev��amos saber melhor, porque h�� anos que nos esquecemos e depois nos precisamos, num loop temporal digno de um Stargate. N��o que andemos a contar os dias. O nosso precisar �� uma emboscada de que mal nos damos conta. Uns minutos nos primeiros dias, depois uma hora ou duas a lembrarmo-nos mutuamente, n��o que o fa��amos em simult��neo, ou pelo menos nem sempre concomitantemente���nem sempre, e ent��o, depois, o purgar. Tentamos, em v��o, purificarmo-nos das coisas que nos dissemos, do quanto somos capazes de nos tirar do s��rio, do ��dio fervoroso e visceral que nos sentimos, da urg��ncia de nos vermos pelas costas antes que a loucura nos ven��a, nos domine e nos leve por caminhos que n��o nos trar��o volta. E ainda assim, o que nos intriga para l�� da conta �� esta coisa de nos sabermos certos, de estarmos ligados como dois telefones sem fios que emitem sinais, frequ��ncias sonoras que s�� n��s dois percebemos, como ondas que enviamos de um para o outro e s��o recebidas sem espanto nem temor����� afinal t��o natural esta sequ��ncia de vibratos, a trepida����o das nossas vozes, a minha nos teus ouvidos e a tua nos meus��� como acordes mel��dicos que conhecemos de cor e que sabemos, sem sabermos como o sabemos, que somos afinal n��s, n��s mesmos a gritar, em cantos opostos do mundo, pelo nome um do outro.

Tarda nada, e tudo volta a ser bom em n��s. Muito bom. Tarda nada e tudo volta a ser uma saudade que corr��i e nos empurra aos trope����es para os bra��os um do outro. Tarda nada e basta-nos uma futilidade, que descambamos na trag��dia.

Dizem-me que �� do sexo, do sexo que s�� somos capazes de ter um com o outro, com mais ningu��m, que �� desse sexo que sentimos falta, que isto n��o �� amor. H�� de ser qualquer coisa porque ao sexo rejeito-o sem tacto e desprezo num tom jocoso a tua fervorosa tes��o.Repugna-me a febre com que me comes, como se amanh�� eu deixasse de existir, ou o meu corpo estivesse para, a breve prazo, diluir-se com as primeiras chuvas.

Quando se te finda esse teu prazo de validade, a validade do teu ��dio e desprezo por mim, falas-me baixinho, a medo, numa tentativa in��til de manteres segura a doida que te calhou amar, antes de nos desequilibrarmos no arame em que nos sustemos, e nos esbardalharmos em qualquer sitio que possamos tornar cama. Um s��tio onde dois corpos possam rebolar sem apelo nem agravo. N��o, nem tem que ser uma cama. Qualquer peda��o de ch��o nos serve para nos sugarmos mutuamente, como vampiros que saem �� noite em busca de sangue. �� no que d�� gesticular demais quando estamos l�� em cima. E vai ent��o que regressas �� minha vida sem o saberes. N��o �� que ver-te me acalme ou me adoce.

Os nossos reencontros, que come��am quase sempre frios e an��dinos como meros conhecidos que se devem algo, raramente me provocam - de s��bito - a vontade de te tocar ou de aprofundar o que nos separa e depois nos junta. ��s vezes, at�� evito olhar-te como se tivesse vergonha de n��o te querer mais, e eu nunca tenho vergonha de nada. Mas quando bate o ponto, quando �� a lua que se v�� brilhante e redonda no negrume do c��u; ou quando me apronto a olhar as estrelas cadentes; quando o lobo uiva ao longe e me �� trazido pelas ventanias; ou quando os planetas se alinham, J��piter e V��nus - o Amor e a Guerra- preciso de ti como do p��o para a boca, mesmo que ao ver-te fique sem fome. Nem precisas de fazer algo, basta a tua ��nsia infantil de estares comigo e o paradoxo de saberes que isto nunca dar�� em nada. Isso e as tuas desagrad��veis implos��es perante esse fardo que carregas h�� anos, admito.

N��o sei o que me prende nem o que me afasta, mas sei que h�� um passo de dan��a desastrado entre os dois, uma m��mica descoordenada, que acaba inevitavelmente com cada um a sair por lados opostos do palco, obrigada, obrigada, adeus at�� �� pr��xima.

Ana Kandsmar





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Published on July 14, 2020 11:26

Obrigada, obrigada, adeus até à próxima!

Eu sabia que não seria para sempre.

Sabia que esse teu esgar de cão raivoso se dissiparia ante uma recordação ou outra que te viesse à memória, mal a rotina e o ramerrão dos dias te aborrecessem de morte. O teu ódio, a tua raiva, essa coisa que te arde no peito e te faz cuspir-me ofensas e impropérios é só uma máscara para o amor que me tens e a manta com que tentas tapar a frustração de me teres a milhas

Eu sabia que acabarias por mendigar. O teu prazo, esse limite de tempo em que consegues respirar sem que me faças o teu suporte de vida, é sempre curto, muito curto, mais longo do que eu desejaria, é certo, mas infinitamente mais curto do que me prometes quando te afastas.

Houve um tempo em que aguentavas um mês, dois vá� fingindo que eu não existo. Desta vez resististe mais. Bateste o teu record, qual nadador que supera o seu tempo a respirar debaixo de água e orgulhosamente é digno do Guiness. Lembraste-te então de que tudo em mim é genuíno e o teu sentimento ampulheta que te permite ignorar-me a prazo, desintoxicou-te dos teus extremos, do teu drama, da tua maneira enviesada e teatral de olhar as coisas� Talvez, mas não te iludas. Continuas a irritar-me a um ponto que a única solução é esqueceres-me, tal como eu te esqueci. Tal como eu te esqueci tantas vezes.

Foi sempre esse o nosso mal, não foi? Tu e eu, passámos os últimos�15 anos a esquecermo-nos um do outro. Às vezes até o fazemos sem esforço. Ao princípio sentimo-nos livres, leves, quase felizes. O nosso único engano é achar que é para sempre, que desta vez é nunca mais.

Devíamos saber melhor, porque há anos que nos esquecemos e depois nos precisamos, num loop temporal digno de um Stargate. Não que andemos a contar os dias. O nosso precisar é uma emboscada de que mal nos damos conta. Uns minutos nos primeiros dias, depois uma hora ou duas a lembrarmo-nos mutuamente, não que o façamos em simultâneo, ou pelo menos nem sempre concomitantemente…nem sempre, e então, depois, o purgar. Tentamos, em vão, purificarmo-nos das coisas que nos dissemos, do quanto somos capazes de nos tirar do sério, do ódio fervoroso e visceral que nos sentimos, da urgência de nos vermos pelas costas antes que a loucura nos vença, nos domine e nos leve por caminhos que não nos trarão volta. E ainda assim, o que nos intriga para lá da conta é esta coisa de nos sabermos certos, de estarmos ligados como dois telefones sem fios que emitem sinais, frequências sonoras que só nós dois percebemos, como ondas que enviamos de um para o outro e são recebidas sem espanto nem temor…� afinal tão natural esta sequência de vibratos, a trepidação das nossas vozes, a minha nos teus ouvidos e a tua nos meus� como acordes melódicos que conhecemos de cor e que sabemos, sem sabermos como o sabemos, que somos afinal nós, nós mesmos a gritar, em cantos opostos do mundo, pelo nome um do outro.

Tarda nada, e tudo volta a ser bom em nós. Muito bom. Tarda nada e tudo volta a ser uma saudade que corrói e nos empurra aos tropeções para os braços um do outro. Tarda nada e basta-nos uma futilidade, que descambamos na tragédia.

Dizem-me que é do sexo, do sexo que só somos capazes de ter um com o outro, com mais ninguém, que é desse sexo que sentimos falta, que isto não é amor. Há de ser qualquer coisa porque ao sexo rejeito-o sem tacto e desprezo num tom jocoso a tua fervorosa tesão.Repugna-me a febre com que me comes, como se amanhã eu deixasse de existir, ou o meu corpo estivesse para, a breve prazo, diluir-se com as primeiras chuvas.

Quando se te finda esse teu prazo de validade, a validade do teu ódio e desprezo por mim, falas-me baixinho, a medo, numa tentativa inútil de manteres segura a doida que te calhou amar, antes de nos desequilibrarmos no arame em que nos sustemos, e nos esbardalharmos em qualquer sitio que possamos tornar cama. Um sítio onde dois corpos possam rebolar sem apelo nem agravo. Não, nem tem que ser uma cama. Qualquer pedaço de chão nos serve para nos sugarmos mutuamente, como vampiros que saem à noite em busca de sangue. É no que dá gesticular demais quando estamos lá em cima. E vai então que regressas à minha vida sem o saberes. Não é que ver-te me acalme ou me adoce.

Os nossos reencontros, que começam quase sempre frios e anódinos como meros conhecidos que se devem algo, raramente me provocam - de súbito - a vontade de te tocar ou de aprofundar o que nos separa e depois nos junta. Às vezes, até evito olhar-te como se tivesse vergonha de não te querer mais, e eu nunca tenho vergonha de nada. Mas quando bate o ponto, quando é a lua que se vê brilhante e redonda no negrume do céu; ou quando me apronto a olhar as estrelas cadentes; quando o lobo uiva ao longe e me é trazido pelas ventanias; ou quando os planetas se alinham, Júpiter e Vénus - o Amor e a Guerra- preciso de ti como do pão para a boca, mesmo que ao ver-te fique sem fome. Nem precisas de fazer algo, basta a tua ânsia infantil de estares comigo e o paradoxo de saberes que isto nunca dará em nada. Isso e as tuas desagradáveis implosões perante esse fardo que carregas há anos, admito.

Não sei o que me prende nem o que me afasta, mas sei que há um passo de dança desastrado entre os dois, uma mímica descoordenada, que acaba inevitavelmente com cada um a sair por lados opostos do palco, obrigada, obrigada, adeus até à próxima.

Ana Kandsmar





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Published on July 14, 2020 11:26